quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

"O Homem Duplicado"

 



Escrito em 2002, “O Homem Duplicado” é um dos livros brilhantemente escritos pelo autor português José Saramago, que também publicou outras obras famosas como “Ensaio sobre a Cegueira”, “As Intermitências da Morte” e “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”.

O magnetismo contido nesta história está atrelado ao seu desenvolvimento surpreendente e imprevisível, que não permite ao leitor sequer imaginar qual será o seu desenrolar. Dos poucos livros que li de Saramago, este foi o que mais me aguçou a curiosidade em conhecer o seu desfecho, apesar de já estar familiarizada com o recurso estilístico da sua escrita. Nessa obra, o autor ter buscado preservar aqui a marca que lhe é característica em todas (ou em quase todas) as suas obras: a narrativa irônica e sem pontuação, com exceção de alguns pontos finais que apenas encerram algum fluxo de diálogo ou de pensamento.

O livro nos traz a história de Tertuliano Máximo Afonso, um professor de história de 38 anos que vive em profunda solidão após passar por um divórcio. No início da obra, o que se pode constatar é que Tertuliano demonstra sinais do que poderíamos chamar de um início de depressão, mas que é por ele definida como “marasmo”: uma vida sem grandes emoções, sem grandes acontecimentos, marcada apenas por hábitos cotidianos e escolhas automáticas. Ou seja, uma vida linear, mas triste e silenciosa em quase todos os seus aspectos.

As coisas parecem mudar de rumo quando, após receber uma indicação de um colega de trabalho, Tertuliano vai até a locadora para locar uma fita cassete e é surpreendido ao assistir ao filme e constatar que um dos figurantes, que quase lhe passou despercebido, é interpretado por um ator que é completamente igual a ele.

Com o espanto causado em Tertuliano ao se deparar com um seu eu duplicado na produção, tem início uma verdadeira saga do personagem para descobrir a identidade do autor que com ele se assemelha fisicamente. 

Aqui, é importante esclarecer que a obra não se propõe a desenvolver uma ficção científica. O leitor não se deparará com a história de dois irmãos gêmeos ou mesmo de clones. Na realidade, a história é muito mais profunda e complexa do que aparenta de início, por isso é bom adiantar que ela não se atrela aos porquês desses dois homens serem idênticos.

A busca incessante de Tertuliano encerra a parte inicial da história, que esteve centrada apenas no cotidiano do personagem. A partir disso, acompanhamos as experiências e as consequências irreparáveis dessa descoberta na vida dos personagens centrais, extraindo dessa narrativa uma reflexão sobre a perda da identidade, o individualismo e a necessidade de pertencimento.

O livro nos convida também a refletir sobre as nossas máscaras e a verdadeira natureza dos nossos sentimentos – na maior parte das vezes “escondidos” entre os papéis que decidimos ou somos levados a exercer na sociedade contemporânea.

“O Homem Duplicado” é uma história repleta de simbolismos que merece ser lida com cuidado e atenção em cada detalhe. Não se intimide pela sua aparente complexidade: ela vale totalmente a expectativa! Recomendo e não é pouco.

O livro foi adaptado para o cinema em 2013 e o ator Jake Gyllenhaal foi o escolhido para interpretar Tertuliano na tela, onde, na realidade, recebeu o nome de Adam Bell.

Boa leitura e forte abraço!


Ficha técnica:

Livro: O Homem Duplicado

Autor: José Saramago

Ano de lançamento: 2002

Editora: Companhia das Letras

Nº de páginas: 318

Gênero: Ficção

terça-feira, 6 de outubro de 2020

"O Cavaleiro Inexistente"




 

Hoje vou falar aqui sobre essa obra que é puro deleite para a Psicologia. Mas não vou fazer aqui uma análise técnica, psicológica, trazendo elementos que expliquem a essência dos personagens ou da obra escrita por Italo Calvino ou mesmo a explicação que possa estar por detrás deles. Farei uma análise da história como ela é, deixando aqui um convite para que a leiam, pois irão descobrir nela uma narrativa bizarra e deliciosa. E o mais importante: atemporal, como todo bom clássico!

"O Cavaleiro Inexistente" narra as aventuras e desventuras de Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, o cavaleiro medieval dos tempos e das batalhas lutadas por Carlos Magno. A peculiaridade nesta obra se inicia por um detalhe que irá propor as reflexões mais significativas a respeito da sua história: Agilulfo é um cavaleiro composto apenas de sua armadura, branca, limpa e reluzente. Em seu interior, nada é. Nada há. Não existe um cavaleiro que preencha o conteúdo da sua armadura, que é um grandioso destaque da corte do imperador do sacro Império Romano.

O cavaleiro Agilulfo é um dos personagens centrais dessa obra. Poderia dizer que é seu protagonista, mas o livro é escrito de tal maneira que não há como atribuir importância a Agilulfo e ao que ele representa sem atribuir a mesma importância aos personagens que o cercam, em especial: Gurdulu, Bradamente, a viúva Priscila e Rambaldo. Os personagens aqui fazem da narrativa uma experiência única de reflexão acerca do SER, do ESTAR e do NÃO SER de cada um deles. 

Agilulfo é um personagem que busca, através dos seus feitos e da sua reputação, preencher o seu vazio e assegurar a sua existência. E, justamente por não existir além da sua armadura, revela-se um "ser" antipático e até mesmo incapaz de demonstrar sentimento ou afetividade.

Toda a sua conduta na cavaleria de Carlos Magno é pautada na razão. Agilulfo não age e não pensa de modo a comprometer a sua racionalidade - a única coisa que possui e que o faz existir. Sua linguagem é puramente objetiva, ou seja, desprovida de opinião, sentimento, substância e significado.

O lugar que ocupa no tempo e no espaço é meramente simbólico. A sua armadura existe apenas para que ele possa transitar pelo meio em que habita.

E o cerne dessa história narrada por uma freira confinada a um convento, cuja penitência é escrevê-la, reside na busca de Agilulfo pelo resgate de sua reputação, que é tudo aquilo que define a sua existência e importância na cavalaria e até mesmo entre o meio social. E sua reputação se revela ameaçada após uma informação dentro da cavalaria questionar todo o mérito recebido por Agilulfo por sua atuação nas batalhas lideradas pelo imperador. Isso significa que, se a personagem a perdê-la, toda a sua história restará anulada, assim como a existência que sobrevive apenas dela. Ele sabe existir apenas enquanto subordinado, enquanto puder servir aos interesses alheios e neste caso, portanto, aos interesses da cavalaria cristã de Carlos Magno.

Agilulfo é cercado de personagens que são o seu oposto. Vivem e lutam as mesmas batalhas, mas com paixão, significado e propósito, diferentemente do protagonista, que se limita a agir racionalmente, sem demonstrar qualquer traço de amor, empatia ou emoção pelo próximo. Em alguns capítulos da história, é possível até mesmo identificar algum traço de humanidade no cavaleiro inexistente em razão da sua interação com determinados personagens. Contudo, talvez isso se atribua à própria necessidade do leitor de lhe conferir tal aspecto para torná-lo ainda mais real e negar a sua inexistência além da sua armadura.

"O Cavaleiro Inexistente" é uma excêntrica história que te conduzirá rapidamente ao sem fim justamente em razão da linha cômica, burlesca e bizarra que assume. E talvez a melhor conclusão que se possa chegar ao final dela é que ela retrata uma sociedade atemporal, imutável nas suas necessidades, que vive da sua exterioridade e que exerce uma função artifical, descartável e impessoal no meio que a circunda. Uma sociedade que vive e sobrevive do reconhecimento do outro acerca de sua reputação: o que veste, o que usa, o que faz, como se o olhar do próximo fosse, sempre, a confirmação do seu próprio SER EXISTIR, ainda que, no seu interior (individualmente considerado), ela esteja totalmente vazia.

Boa leitura e forte abraço!

Fica técnica: 

Livro: O Cavaleiro Inexistente

Editora: Companhia do Bolso

Ano de lançamento: 1959

Autor: Italo Calvino

Nº de páginas: 120

Gênero: Romance/ficção 

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

"As vantagens de ser invisível"

                                    


                               

Sabe aquele livro que traz uma história profunda, cheia de detalhes doloridos, mas que possui uma narrativa leve que te conduz rapidamente ao seu fim dentro de algumas horas?

“As Vantagens de Ser Invisível”, definitivamente, um deles.

Adianto que os temas em destaque dessa história são: violência sexual e adolescência. Portanto, nada fáceis de serem trabalhados.

No último dia de setembro, mês que propõe conscientização sobre saúde mental e, portanto, de combate ao suicídio, trago a resenha dessa história emocionante escrita por Stephen Chbosky.

O livro conta a história Charlie, um garoto de 15 anos que, buscando se recuperar de uma depressão, tenta levar sua vida adiante depois de perder seu único e, portanto, melhor amigo, que se matou com um tiro na cabeça. Na escola, ele conhece Patrick e Sam, dois novos amigos que vão ajudá-lo na reconstrução do seu sentido de ser, existir, crescer e se relacionar com o mundo a sua volta. Charlie busca expressar seus sentimentos através da escrita e, no início desta história, o que se nota é que ele demonstra uma certa falta de confiança nos seus pais e irmãos e que se consome por uma imensa culpa e saudade pela sua falecida tia, que morreu no dia do seu aniversário.

Pode parecer mais um livro adolescente, mas eu posso te garantir: não é! É um super drama que traz à tona assuntos como abuso infantil, depressão, suicídio e a busca incessante por aceitação e pelo sentido de pertencimento (na escola, na família, no mundo).

Charlie busca, em uma turma de “desajustados”, encontrar aceitação, compreensão e o melhor de tudo: recuperação! E esse caminho acaba trazendo à tona dores do seu passado e que tanto justificam a preocupação de sua família com o seu comportamento e saúde mental, quanto escancaram a verdadeira natureza da sua relação com sua falecida tia, relação essa cujas consequências o levou a tentar cometer suicídio.

Através dessa narrativa, o autor não apenas mergulha nos motivos que levam uma pessoa a se suicidar, mas também convida o leitor a questionar quantas das pessoas ao nosso redor, apesar de parecerem bem, realmente não estavam. Mas que algo sempre pode ser feito por nós, ainda que através de gestos singelos como amor, atenção, escuta e empatia.

O livro convida a uma verdadeira reflexão sobre a importância do diálogo nas relações humanas. Sem dúvidas, a sua mensagem mais importante é: NÃO DESISTA. VOCÊ NÃO ESTÁ SOZINHO. SUAS EXPERIÊNCIAS NÃO TE DEFINEM.

Busque ajuda se você não se sentir bem ou forte emocionalmente!

Forte abraço!



Ficha técnica:

Livro: As Vantagens de Ser Invisível

Editora: Rocco

Ano de lançamento: 2007

Autor: Stephen Chbosky

Nº de páginas: 224

Gênero: romance/drama/ficção juvenil


quinta-feira, 24 de setembro de 2020

"Laranja Mecânica"




 

Um clássico é um clássico. Escrito por Anthony Burgess, “Laranja Mecânica” é um livro que traz em seu contexto uma relevante crítica ao sistema de tratamento ao qual o protagonista é submetido para se tornar “avesso” à violência – sistema esse que dele retira todo o seu livre arbítrio, manipulando-o e moldando-se conforme a expectativa de uma sociedade hipócrita, falha e alienada. A obra também acaba por fazer uma crítica ao sistema carcerário e como o seu método de correção inviabiliza a reabilitação do seu humano, em especial, o de Alex, o protagonista desta história que foi escrita há quase 60 anos e que, desde então, se tornou lendária e popular entre os jovens e adultos.

Em breve resumo da história, que se passa em uma sociedade distópica comandada por um governo totalitário, Alex DeLarge é um jovem de 15 anos que faz parte de uma gangue de delinquentes londrinos que, sob o efeito de drogas sintéticas ingeridas no leite, comete crimes de ultraviolência noites afora, tais como estupro, assassinato, extorsão, roubo, agressão e violência verbal. Após um dos ataques não ocorrer conforme o esperado, a gangue de Alex acaba conseguindo fugir, enquanto ele é capturado e encaminhado ao presídio, onde é submetido, como cobaia, a um novo tratamento que promete a cura da violência juvenil. Nesse tratamento, conhecido no livro como Tratamento Ludovico, Alex é forçado a assistir, imobilizado, cenas de extrema violência enquanto recebe injeções de substâncias que lhe causam repulsa e enjoo. Com isso, o que se pretende é causar em Alex o sentimento de aversão a tudo que remeta à violência. Após o tratamento, Alex retorna para a sociedade, incapaz realmente de se manter-se próximo de qualquer situação violenta, porém, incapaz também de apreciar o compositor clássico que tanto amava: Beethoven, tamanhas o alcance e as consequências do “lavagem cerebral” ao qual foi submetido.

A história é narrada em primeira pessoa por Alex que, em descrições “cruas”, expõe seu caráter de garoto criado em ambiente tóxico e degradante, o que faz ao nos compartilhar com o leitor os seus pensamentos maldosos, a frieza de sua conduta e a necessidade de sentir-se superior a pessoas social, cultural e fisicamente vulneráveis e, muitas vezes, aos seus próprios colegas da gangue.

Burgess, autor do livro, criou algumas expressões novas como forma de ambientar o leitor no tempo e espaço pretendidos e conferir à narrativa o seu tom distópico definitivo. Seu vocabulário próprio pode ser acompanhado por um glossário ao final do livro, porém a experiência como leitor atento e imerso desse clássico parece ser mais completa se não precisar recorrer a ele. O uso corriqueiro dessas expressões pode amarrar um pouco o fluxo da leitura no início do livro, entretanto, à medida em que ela avança é completamente possível compreender essas expressões e se acostumar com o uso e presença delas.

Apesar do comportamento violento de Alex, a sinceridade de seus relatos pode até proporcionar uma maior empatia com o personagem quando este já se encontra no presídio, sendo submetido a tratamentos degradantes. E viabiliza uma reflexão ainda maior sobre essa sociedade distópica (ou nem tanto) trazida pelo livro: até que ponto a maldade do ser humano pode ou não ser fruto de uma visão distorcida imposta por um ambiente hostil e manipulador? Será que todos nós estamos, de fato, exercendo nosso poder de escolha ou estamos apenas vivendo uma “liberdade” que já chegou a nós com seus limites preestabelecidos?

Vale a reflexão!

Boa leitura e um forte abraço!

 

Ficha técnica:

Livro: Laranja Mecânica

Editora: Aleph

Ano de lançamento: 1962

Autor: Anthony Burgess

Nº de páginas: 352

Gênero: ficção científica/distopia